17 de setembro de 2013

PARA REFLETIR

De rancorosos e solitários.


 "Assim falava Zaratustra"
Friedrich Nietzche


AS MOSCAS DA PRAÇA PÚBLICA



Foge, meu amigo, refugia-te na tua solidão! Vejo-te aturdido pelo ruído vão dos grandes homens, importunado pelo aguilhão dos pequenos.
Os rochedos e os bosques saberão calar-se, gravemente, na tua companhia.
Sê de novo semelhante a essa árvore que amas, com a sua larga ramagem, silenciosa, atenta, suspensa por sobre o mar.
Onde cessa a solidão começa a praça pública; e onde começa a praça pública começa também o ruído dos grandes atores e o zumbido das moscas venenosas. No mundo, as melhores coisas não são nada apreciadas se não houver alguém que as ponha em cena; a estes encenadores chama a multidão grandes homens. A multidão não tem o mínimo sentido do que é grande, quero dizer, do que é criador. Mas é sensível aos encenadores e aos atores das grandes causas. O mundo gira ao redor dos inventores de novos valores - gira em invisível movimento. Mas ao redor dos comediantes, é a multidão e a glória que gravitam - e diz-se que "assim vai o mundo".
O comediante tem espírito, mas um espírito destituído de consciência. Acredita sempre no que lhe permite levar os outros a acreditar - nele próprio!
Amanhã terá uma nova crença, e depois da amanhã outra, mais nova ainda. Tem percepções rápidas, como a multidão, e intuições cambiantes.
Derrubar, eis aquilo a que ele chama demonstrar. Excitar, eis aquilo a que ele chama convencer. E, a seus olhos, o sangue é a melhor das razões.
À verdade feita apenas para ouvidos delicados, chama ele mentira e falsidade. No fundo, apenas acredita nos deuses que enchem o mundo de grande ruído! A praça pública está cheia de solenes bobos e a multidão vangloria-se dos seus grandes homens; neles saúda os senhores do momento.
Mas, para eles, o momento urge; por isso te apressam, por sua vez. E também a ti exigem que lhes respondas com um sim ou um não. E pobre de ti se pretendes colocar-te entre o pró e o contra! Não invejes esses intransigentes, esses impacientes, ó adorador da verdade! Nunca, até hoje, a verdade se abandonou nos braços dos intransigentes. Não tenhas medo de tais impulsivos regressa ao teu refúgio; não é apenas na praça pública que nos assediam para tentar arrancar de nós um sim ou um não? Lenta se desenrola a vida dos poços profundos; é-lhes necessário muito tempo para conhecerem o que tombou nas suas profundezas. Tudo o que é grande foge à praça pública e à fama; é longe da praça pública e da fama que sempre viveram os inventores de novos valores. Foge, meu amigo, refugia-te na tua solidão! Vejo-te aguilhoado pelas moscas venenosas. Refugia-te onde sopre um vento rijo e forte.
Refugia-te na tua solidão! Viveste demasiado perto dos pequenos e dos miseráveis. Foge à sua invisível vingança! Para ti apenas têm um sentimento, o rancor. Não mais ergas a mão contra eles. São inumeráveis; o teu destino não é ser enxota-moscas! São inumeráveis, esses pequenos, esses miseráveis; e já se viu orgulhosos edifícios serem reduzidos a ruínas pela ação das gotas de chuva e pelas ervas daninhas. Não és de pedra, mas eis-te já corroído por essas pequenas gotículas. Acabarás por te quebrar, por te despedaçar sob todas essas gotas. Vejo-te espicaçado pelas moscas venenosas, sangrando de cem picadas, e o teu orgulho nem uma só vez se quer enfurecer.
É com toda a inocência que querem o teu sangue; as suas almas anémicas reclamam sangue, e com toda a inocência te picam. Mas tu, coração profundo, sofres profundamente mesmo das feridas mais leves; e, antes que se tenham cicatrizado, já os mesmos parasitas voltam a rastejar sobre a tua mão. Pareces-me demasiado orgulhoso para matar esses glutões. Mas toma cuidado não te vejas condenado a suportar toda a sua venenosa injustição.
Vêm zumbir ao teu redor; mesmo quando te louvam, o seu louvor é puro importunar. O que pretendem é estar o mais perto possível da tua pele e do teu sangue. Adulam-te como se adula um deus ou um diabo; choramingam a teus pés como aos pés de um deus ou de um diabo. Que importa? Não passam de aduladores e de choramingas, nada mais. Também sucede fazerem-se amáveis contigo, mas essa foi sempre a astúcia dos cobardes. Sim, os cobardes são astutos! Muito reflectem a teu respeito com a sua alma mesquinha; acham-te inquietante! Aquilo com que nos inquietamos acaba sempre por se tornar inquietante. Punem-te por todas as tuas virtudes. Só perdoam, e de todo o coração, os teus erros. Indulgente e justo como és, dizes para contigo: "Não são culpados da sua própria mesquinhez". Mas a sua alma mesquinha pensa: "A existência de tudo que é grande é um pecado".
Mesmo quando és indulgente para com eles, pensam que os desprezas; e as tuas boas obras, retribuem-nas com dissimuladas malfeitorias.
O silêncio do teu orgulho é-lhes sempre desagradável; rejubilam de cada vez que te mostras demasiado modesto para seres vaidoso. O que discernimos nos homens, é também o que neles nos irrita. Assim, defende-te desses que são pequenos. Sentem-se pequenos perante ti, e a sua baixeza é como um carvão que se avermelha e contra ti aquece uma invisível vingança.
Não reparaste já que muitas vezes, à tua aproximação, se calam bruscamente e a força parece abandoná-los como o fumo abandona um fogo que se extingue? Sim, meu amigo, tu és a má consciência do teu vizinho; pois nenhum está à tua altura. Por isso te odeiam e desejariam sugar-te o sangue.
Os teus próximos serão sempre moscas venenosas; a tua grandeza só serve para os tornar mais venenosos e mais importunos.
Foge, meu amigo; refugia-te na tua solidão, onde sopra um vento rude e forte. Não é o teu destino servir de enxota-moscas.

Assim falava Zaratustra!

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